río ichilo /
as diferenças despiram as escamas
e conheceram-se em veias verdes,
entrançados caules trepadores.
no seu vazar lento uma linha de seiva aguda
igual que el ondula por la tierra buena serpenteando.
e daquela noite indormida, pari um novo rio.
(fora) do Centro (fora) do Corpo.
Apontamentos com pétalas da Lourdes Castro /
não é fácil sair de si próprio, se bem que não haja coisa mais natural do mundo. Basta deixar a atenção tomar conta de nós e os sentidos à espreita que não à espera. É então que o mundo se revela: indissociável de nós e nós inseparáveis do que nele encontramos. Cuidadosamente, li da Lourdes.
se o desenho é a praxis que revela o contorno, igual é o yoga para o contorno do íntimo. O papel não é apenas o suporte mas o que descobre o branco para as cores e sombras, a mesma função é a do tapete de prática que por oportunidade lhe serve o aspecto reflector de um espelho. Coleccionar silhuetas nos asanas, resgatar gestos nos mudras, imergir na respiração. Ambos reduzem as coisas à sua essencialidade. Nunca se esgotam. Um movimento circular desmaterializado, ao centro do qual estamos e somos projectados para fora dele.
fundamento, estrutura, alicerce. O centro que não se vê, chama-lhe Lourdes. Mas qual? O de um arranjo de flores? O de um seixo? O da palma da mão? São milhares de centros assinalados num planisfério. A discreta invisibilidade que para manifestar a sua virtude precisa de nunca se ver para que se veja. Fundo, núcleo, plataforma. O que para se sustentar se oculta na sustentação. A árvore apoia-se nas suas raízes, fixa-se ao solo, absorve os minerais. Muladhara. A própria palavra emite-se e responde-se a si própria. “Mula”, raíz, “Dhara”, apoio. O soalho do corpo físico nos seus instintos primários e sobre o qual todos os outros se levantam.
a base
o centro da circunferência é explicável pelo perímetro. Não são os corpos celestes definíveis pelas órbitas dos seus planetas ? Não são as marés motivadas pela lua? Encontrar um centro implica sempre uma translação. Um à volta de. Ir de um ponto ao outro. Assim compreende-se que a rotação sobre nós mesmos é inseparável da translação. O que nos faz sair para fora de nós para o centro do mundo sem sairmos de nós. Um centro é sempre uma relação e toda a acção deve estar dentro dessa circunferência.
nunca um centro seria um centro se nada existisse fora dele. Enquanto houver um centro, haverá uma periferia, um limite pronto a ser ampliado, por isso vivo. Limite ilimitado. Can that movement stop? Now the next question is: is that possible? I think that is a wrong question. When you see the necessity of stopping, when the brain itself sees the movement and stops, it has already ended the movement. Krisnamurti respondeu ao aluno. Toda acção deve estar dentro desse círculo. A actividade autocentra-se. Autocentrado actua-se.
quando /
deste sono vê-se aquela sua nudez de harpa
lábios toranja de estrombo
vestida de palidez sílabas nervuras rendilhadas
um cinto de girassóis atado à cintura
no ar toca e parece tudo menos mortal
una e múltipla
solta o cabelo perturba o céu
um céu intenso redondo e azul.
Xico /
Pede-se a quem souber que avise, que escreva, que ligue, que mande dizer onde está. Alto, moreno, desimpedido. Foi e disse que não se demorava, mas não voltou. Sem insinuações, por favor continuem a procurar com toda a teimosia e convicção que Deus recompensa sempre no fim, mais além, depois. Ou talvez não seja preciso esse favor divino se há corações. Esqueçam as lutas políticas, as discussões ordinárias de café, os reality shows, os caroços por cuspir, os adjectivos sanguinários, o tempo mexido. Tem graça que o tempo nem existe. E não há beleza maior do que sorrisos puros de orvalho, acções desinteressadas e a calma das flores. A música desatou-se em forma de busca no dia em que foi e disse que não se demorava, mas nunca mais regressou. Solta, recompõe-se lentamente e torna a respirar fundo. Agora no centro de uma estrela invisível. Ao Xico.
urca /
E no meio do meu caminho uma pedra rugiu para mim. Uma pedra. Não perco nunca o hábito de escutar as pedras.
meada dos sons da cidade /
Estava morna a temperatura desta manhã tal como o interior do quarto.
Começou com uma pergunta e a sensação de que se podia desfazer os sons exagerados da cidade. Desata-los das ruas e dos telhados dos prédios e pendura-los na ramagem seca dos arbustos nus. Atravessava-lhes a separação pelas qualidades mais fortes. Os sujos para um lado, os vazios para o outro. Ainda sobraram umas pontas, uns nós, uns sopros.
As cores diluíam-se na delicadeza aquática de pigmentos. A meada dos sons tingida de azurite e terra verde deixada à meditação dos insectos.
letter to tanja /
Behind hectic steps. The urge to escape from ourselves rounding our backs, the quadrangular space preventing us from leaving it. I often stop to see the as two closed eyes: the greatest relevance of a spiritual landscape. Starting from the contemplation, a thousand visions so near to me in opposition to the reduced reality.
I know I’m on the right side even if I always walk on the golden left one. Knowing how to observe is a revolutionary act.
canção-ventre /
suavemente sossegada
é a voraz carnívora
tecida em rendas e aguaceiros
a camélia que no ventre afaga
o toque de uma língua precipitada
e dança como a serpente
na trepidação mais pura
dos nervos, da água e de outras fragilidades.
fêmea em lágrimas e pérolas
no medo é fascínio
que ora sussurra em chamas
ora habita em silêncio
e entra no amor de qualquer maneira
quando invoca o delírio da natureza
que é o seu corpo em fúria.
3/
Há manhãs que são gomos de tangerina. Mãos em concha. Luas mornas, rubras, meio cheias. Elementos que se contraem e se expandem num bailado de pirotecnia e cânticos gigantes. A leitura é vaga, susceptível aos retratos falsos. Mesmo assim, em misteriosos rumores, as previsões do oráculo avançam. Do clarão sereno à metáfora, lapidam-se os diamantes.
Há manhãs que são lume. Acesas, despertam-se em artérias solares, as mais ofegantes de todas. A fêmea em fúria. Resilientes, trémulas da raiz das coxas à boca, agarram-se à expressão. A saliva adolescente dos sexos, deixam-se escorrer como serpentes.
Há manhãs que são doces. Têm nos lábios a cor negra das amoras e assobiam perfumes. Às vezes, conhecem-se pela sua timidez, pela orla estalar da chuva. Sozinhas, vivem na desordem das raízes atadas aos pulsos. A linguagem que não diz.
EARTHS’ RUT IS THE POETRY /
I float and I am the virgin bird who loves
its first flight with the same accuracy
and resistance of the rocks on fire.
I go through the orbits, the nerves,
the soaking of my caustic tears.
it still rains on the harvest.
A deliberated and fragrant suspension
that adorns her vagina with petals, sesame,
turmeric and longing.
it wasn’t the snakes, the white feathers
or the evil eye
but the astrological phenomena
thrown to the groans of the earth.
mariposa /
se ao menos tivessem sentido alguma vergonha. Se ao menos as línguas feridas se escutassem para contrariar o passado, não choraria mais cristais.
num sopro circular, nesse movimento redondo de mariposa, finalmente sente-se mais próxima da solidez. Asas abertas, o corpo leve pousa no deserto e reconstrói a paisagem. Sem imitações, apesar de tudo. Todos os corações-pedra, as trovoadas secas, os esqueletos de corais, as trepadeiras envelhecidas, o iodo das dunas queimadas, os olhos inundados de chuva, as montanhas de metal, o hexagonal dos dentes marcado na pele, os fluídos marinhos, os azulejos nus, o vício feliz das estevas, o tamborilar aéreo dos dedos. A pouco e pouco, as palavras respiram. Já estão menos loucas, menos cansadas.
entre dois seios esculpidos em veias azuis, correm rios de água doce e a mansidão do universo. Em silêncio, semeio arquipélagos de nomes novos para o mundo. Arrepio-me sempre, entre cada semente, e espero pacientemente que delas nasça a ordem das coisas.
não sei desenhar raízes /
o suporte orgânico do silêncio
guarda a memória das partes
e refiro-me à ponta dos dedos
que como raízes
inventam de novo as palavras.
santiago /
escapo-me à confusão dos âmagos
para contemplar as plantas exóticas,
a plumagem âmbar dos pássaros
e os privilégios verbais do espírito.
cedo aprendi a falar com as polpas dos dedos,
são nadadores exímios de danças curtas.
na meia sombra, os impulsos
têm raízes e a folhagem tenra.
nunca bebi nem fogo nem tempo,
mas entendi que um coração extasiado em suor
é o melhor material de observação
porque amplia o modo como nos metemos para dentro
ou procuramos sair de nós.
truque dos antípodas /
Pontualmente
e as extremidades são só coisas naturais
Como dizer que os cardos são afagos
que os flamingos voam para saturno
e que é na humidade da terra
que se completa o mundo.
interlúdio /
que ambíguo modo é este
esconso prazer do vício
sem saber se me existes ou se me aconteces.
cabelo negro /
foi assim que pensaste que eu ficava bem,
a usar os domingos lentos no meu cabelo negro.
os domingos como flores escondidas
no emaranhado do meu cabelo negro.
com os teus domingos invertebrados,
ajeitei eu o meu cabelo negro.
os teus domingos, pétalas num caule molhado.
arousa /
daqui a pouco
o silêncio.
suponho que é o que acontece
quando as rochas adormecem.
domingo /
não preciso que me ensines a cair
nunca tive medo de alturas
e salto sempre à altura dos meus próprios ombros.
ensaios para penedos /
I.
digo do teu corpo
meu corpo
os contornos de um penedo
II.
já reparaste, meu bem
que o meu corpo deitado
tem o contorno de um penedo nunca acabado?
cintura /
as minhas pernas
como braços de medusa
são tranças
com a tua cintura
homeostasia /
encontrei-me contigo
como tempo como fome
como malva como sal
como loucura como deusa
como utopia como sonho libertário
não disfarço
nem o halo nem o cansaço
nem a placidez do ócio
nem a confusão às cegas.
quando o dia é igual à noite
ponho os corpos no seu lugar
e deixo ser, como pediste,
que a homeostasia é necessária
para as peles se conhecerem.
auto-biografia /
de cintura estável
nasci das ervas verdes
e logo soube que a madrugada
era minha companheira
por isso pedi-lhe o que não devia
tapei a nudez com o cabelo
onde tenho vestígio
tenho também riqueza.
e enquanto a tua mão desliza,
a minha pede por mais,
contorna e ainda não acabei.
hiato /
o solstício a negação
a teimosia a exactidão
a cidade o vocábulo
o erro a palpitação
a água a linguagem
a noite a passagem
a procura o poema
o movimento a paisagem
todas as vontades interditas
no mesmo depoimento:
o hiato.
em minúsculas /
não acordes nem te mexas mais
deixa-te te estar assim como estás
totalmente ausente
por este mar acima.
mas como ser só uma
quando há partes tuas que me devoram
e o que seria dos meus braços cansados
se não fosse este sossego aos bocados.
prefiro-te em minúsculas
do que suspensa em inspirações.
setembro /
observando apenas a intenção
reconheço-me como a intimidade
mais antiga serena dissonante
da espécie humana
quando o verão entrou em nós
ofereceste-me o outono
e eu dei-te a liberdade
do meu corpo desfeito em flores
essa mesma liberdade
encontrou a madrugada adormecida e
foi no seu eterno espreguiçar
que te afundaste em mim.
astro-lábio /
os encontros que adormecem
os amantes que desejam
os serões que se repetem
as bocas que não se cansam.
e enquanto sonhava, o embriagado perguntou:
“o amor ainda existe?”
a astrologia que já não explica
a vontade que dá fome
o silêncio que ainda mais só fica
aquele orgasmo que consome.
e eu, enquanto ouvia, embriagada perguntei:
“o amor ainda existe?”
os horóscopos, as cartas, os signos,
as previsões, os segredos, a lua a minguar
Tudo errado no expoente da leveza.
Sou da cor do nada a provar
mesmo assim não tenho nunca a certeza.
se o amor existe
tem no rosto a dependência
a língua quente
o peito obediente
o olhar paciente.
é esta a minha loucura que morre num canto:
entro em transe
e à procura da perfeição
acordo num novo romance.
sereia /
misturei-me com as algas.
sem saber que me afogava,
fiz-me sereia
e desapareci.
a poesia não é surda
quando nela se deita a lua
para adormecer.
setembro /
era beleza só beleza.
e ela sabia-o em qualquer lugar.
quando ela dizia qualquer coisa
a noite fazia-se de dia
no sossego da sombra vadia.
contamos histórias
embriagaste-me em insónias
observaste-me na minha nudez.
estrela luz touro que fugia
inspiramos ao mesmo tempo
ou um de cada vez, já não me lembro bem.
entretanto anoitecera
e enquanto inventavas saltos novos
eu ainda sonhava até ao fim de setembro.
as esferas amam tangentes /
contigo a desenhar a mesma circunferência
parto e não saio do mesmo sitio
Afinal o Poppe tem razão
as esferas amam tangentes.
o cio da terra é a poesia /
flutuo e sou a ave virgem
que ama o seu primeiro voo com a precisão
e a resistência dos rochedos em lume.
atravessar as órbitas, as sinapses.
sobre a seara ainda chove
e dou graças à poesia pela liberdade,
esfera morna a transbordar de palavras
e de amor.
nesta deliberada suspensão de perfumes
enfeita-se o vazio de pétalas,
sementes de sésamo e curcuma.
não foram as serpentes nem as penas brancas
foram os fenómenos astrológicos
lançados aos gemidos da terra.
tonada das aves /
a turbulência cardíaca das veias
polidas em madeira e minutos redondos
quando os sopranos dão o dó no andar em cima
e os maníacos bebem o caldo dos pêssegos tardios
colhe-se um som específico:
o riso das aves.
Liberdade /
nascias ninfa num parto com dores
entre pérolas vermelhas e searas de flores.
fêmea fremente os lábios escarlate
poeta dos Homens
a Liberdade.
a língua /
ficamos cingidos ao húmido tacto
no gume das nossas línguas
que no bebem e levantam
perpendiculares ao instante da descida.